Friday, February 08, 2008

Diga-o com flores
03/11/2007

Uri Avnery
Gush Shalom


Alegrem-se, alegrem-se: a ministra dos Negócios Estrangeiros decidiu nomear uma comissão especial para tratar das “questões nucleares” da paz com os palestinianos.

Sim, de facto. Em preparação para o encontro de Annapolis, o primeiro­‑ministro colocou a ministra dos Negócios Estrangeiros à frente das negociações com a Autoridade Palestina.

Pode-se perguntar: não é natural que o ministério dos Negócios Estrangeiros trate da política internacional?

Bem, pode ser natural em outros países. Em Israel, não é natural de todo.

Já nos primeiros anos do estado, o ministério dos Negócios Estrangeiros era alvo de chacota. Um amigo meu compôs uns versinhos que podem ser mais ou menos traduzidos por «O ministério dos Negócios Estrangeiros / é muito importante / Porque sem ele / o que fariam os seus funcionários?»

O estado nasceu em guerra. Os seus heróis eram os comandantes militares. O arquitecto do Estado, David Bem­‑Gurion, colocou os trilhos sobre os quais o estado se tem movido até hoje. Até ao seu último dia de trabalho, foi simultaneamente primeiro­‑ministro e ministro da Defesa. Nunca se deu ao trabalho de esconder o seu profundo desprezo pelo ministério dos Negócios Estrangeiros.

Toda aquela geração partilhava desse desprezo. Homens de verdade, com o sotaque de Sabra, entravam no exército, tornavam­‑se generais e assumiam o ministério da Defesa. Os fracotes, com sotaque alemão ou anglo­‑saxão, entravam no ministério dos Negócios Estrangeiros, tornavam­‑se embaixadores e burocratas. A diferença era visível para todos.

Isso também encontrava expressão nas relações pessoais: Ben-Gurion torturou o primeiro ministro dos Negócios Estrangeiros, Moshe Sharett, o qual via como um rival potencial. E de facto, quando Ben-Gurion decidiu, em 1953, recolher-se temporariamente na colonato de Sdeh Boker, no deserto, Sharett tornou­‑se primeiro­‑ministro. Pagou caro por isso: quando Ben-Gurion voltou do seu auto­‑exílio, atropelou Sharett e, ao preparar a campanha do Sinai de 1956, afastou-o pura e simplesmente.

Entregou os Negócios Estrangeiros a Golda Meir, mas também lhe passou por cima. A campanha Sinai­‑Suez foi preparada pelo jovem Shimon Peres, director­‑geral do ministério da Defesa e servil admirador de Bem­‑Gurion. Ajudou a organizar a coligação franco-britânico-israelense para o ataque ao Egipto. Em troca da nossa prontidão em apoiar os franceses na sua guerra contra os insurgentes argelinos, os franceses deram­‑nos o reactor nuclear de Dimona. Tudo isto nas costas do ministério dos Negócios Estrangeiros.

Ao longo dos anos, foi assim que se passou. As questões importantes das relações externas eram tratadas pelo gabinete do primeiro­‑ministro e pelo ministério da Defesa, com a assistência da Mossad. Os nossos embaixadores por todo o mundo tomavam conhecimento delas pelas notícias.

Talvez isto não seja uma peculiaridade israelita de fazer as coisas. Actualmente, os presidentes e os primeiros­‑ministros conduzem a sua própria política externa. Voos rápidos, telefone internacional e o correio electrónico permitem­‑lhes comunicar-se entre si. Em quase todos os países, os ministros dos Negócios Estrangeiros vão­‑se rapidamente convertendo em empregados (ou empregadas) de escritório.

No nosso país, isto é especialmente visível, dado o papel central que o exército desempenha na nossa vida nacional. No jogo de cartas israelense, um general vale mais que dez embaixadores. As avaliações da Inteligência Militar e os relatórios da Mossad sobrepõem­‑se a todos os documentos dos Negócios Estrangeiros – se alguém os lê sequer.

Não consegui evitar sorrir quando li sobre a decisão de Tzipi Livni de formar uma equipa da paz.

Há 51 anos, uma semana antes da campanha do Sinai, publiquei um artigo intitulado “O Estado­‑maior branco” que se tornou algo como a minha bandeira. Dizia que, dado que o alcance da paz era a principal missão do nosso estado, era inaceitável que não houvesse um corpo profissional encarregado exclusivamente dessa matéria. Propus a criação de um Ministério da Paz especial. O ministério dos Negócios Estrangeiros, sustinha eu, não era adequado para essa tarefa, dado que a sua principal função era empreender a luta internacional contra o mundo árabe.

Para popularizar a ideia, afirmei que, como contraponto do “Estado­‑maior caqui”, que prepara operações de guerra, precisávamos de um “Estado­‑maior branco”, que se prepararia para as oportunidades de paz. Tal como o Estado-maior do exército prepara planos de contingência para situações militares, a equipa do Estado­‑maior branco deveria preparar planos para operações de paz. Essa equipa deveria ser composta por especialistas em assuntos árabes, diplomatas, psicólogos, economistas, especialistas em inteligência e assim por diante.

Dez anos mais tarde, repeti esta proposta num discurso no Parlamento, posteriormente incluído numa antologia israelense de discursos importantes. Repeti a observação de que, em todo o imenso aparato governamental, com as suas dezenas de milhares de empregados, não havia sequer uma dúzia de funcionários encarregados de trabalhar pela paz.

Isto foi precedido de um episódio bastante divertido. Eric Rouleau, um dos mais conhecidos jornalistas franceses em assuntos do Médio Oriente, organizou um encontro secreto entre mim e o embaixador tunisino em Paris. Isso foi depois de Habib Bourguiba, o lendário presidente da Tunísia, ter feito um discurso histórico em Jericó, no qual, pela primeira vez, exortara o mundo árabe a fazer a paz com Israel. Pedi ao embaixador para encorajar o seu presidente a prosseguir com essa iniciativa. O embaixador propôs um acordo: Israel usaria a sua influência em Paris para instar os franceses a melhorarem as suas relações com a Tunísia (que estavam num ponto baixo) e em troca Bourguiba renovaria a sua iniciativa.

Corri para casa e marquei um encontro urgente com o ministro dos Negócios Estrangeiros, Abba Eban. Trouxe com ele Mordechai Gazit, chefe da divisão do Médio Oriente. Eban ouviu o que eu tinha a dizer e respondeu com poucas palavras sem se comprometer. Quando ele saiu, Gazit explodiu numa gargalhada.

«Você nem imagina como isto aqui funciona», disse ele. «Se Eban tivesse levado a sério o que você disse, e tivesse ordenado ao seu gabinete para preparar um relatório sobre as relações entre a França e a Tunísia, não conseguiriam encontrar ninguém para fazer o trabalho. Em todo o ministério dos Negócios Estrangeiros há talvez meia dúzia de pessoas que tratam de assuntos árabes».

Então, fiz aquele discurso, e depois falei sobre ele com o primeiro­‑ministro Levi Eshkol; e mais tarde com o primeiro­‑inistro Yitzhak Rabin – mas nada saiu dali. Por isso me permito ser um pouco céptico sobre a iniciativa de Livni.

Ultimamente, o antigo Secretário de Estado, Henry Kissinger, publicou um livro sobre a diplomacia como profissão. Ele afirma que os grandes ministros dos Negócios Estrangeiros tiveram um impacto muito mais amplo na história do que os reis e os comandantes militares.

Não sou um dos grandes admiradores deste homem, que tem a minha idade e que, como eu, nasceu na Alemanha. Às vezes interrogo­‑me sobre o que teria acontecido se o pai dele tivesse emigrado para a Palestina e o meu pai para os EUA. Ter­‑me­‑ia eu tornado num ego­‑maníaco e num criminoso de guerra, e ele num activista da paz israelense?

Mas estou bastante preparado para aceitar a tese central do livro: que nenhuma política externa séria é possível sem um claro e consistente objectivo de longo prazo.

A ministra dos Negócios Estrangeiros israelita não tem tal objectivo. Ela discursa, declara e anuncia, mas não é claro para onde ela estaria a conduzir a nossa política externa, se lhe fosse permitido conduzi­‑la. Após dois anos no cargo, a sua imagem política é pálida e embaciada.

Uma vez tenta ultrapassar Olmert pela esquerda, outra vez pela direita. Um dia fala sobre a necessidade de lidar com as “questões nucleares”, outro dia diz que o tempo não está maduro para um acordo definitivo. Ela apoiou a recente guerra do Líbano, mas agora critica-a severamente. Depois da publicação do relatório intermédio da comissão Winograd, exigiu a demissão de Olmert, tencionando substituí-lo ela mesma, mas quando essa pequena tentativa de putsch fracassou, ela permaneceu no seu governo e continua a partilhar a responsabilidade pelas suas acções e omissões.

Livni detesta Olmert, e Olmert detesta Livni. É verdade, ambos vêm “da mesma aldeia” – o pai de Ehud e o pai de Tzipi foram ambos membros graduados do Irgun. Ambos foram criados na mesma atmosfera política de direita, ambos beberam da mesma fonte. Quando a mãe de Livni faleceu há algumas semanas, ficaram ao lado um do outro no funeral e cantaram o hino da Betar: «O silêncio nada vale / Sacrifica sangue e alma / Pela glória oculta…» (A Betar, que ainda existe, era o movimento juvenil de direita que deu nascimento ao Irgun.)

O asco mútuo entre Ben-Gurion e Sharett, e entre Rabin e Peres repete-se hoje. Essas relações têm uma influência poderosa na política, de acordo com o famoso dito de Kissinger: «Israel não tem política externa, só tem política doméstica». (Parece­‑me que isto é verdadeiro para muitos países democráticos, incluindo os EUA.) A política externa de Israel emana de considerações domésticas: Olmert está determinado a sobreviver a qualquer custo. Dado que o seu governo inclui elementos de extrema­‑direita, e até fascistas, qualquer movimento real no sentido da paz conduziria à sua dissolução.

Se um governo não tem um objectivo de longo prazo, como conduz a política? Kissinger não parece dar uma resposta a isto. Eu tenho uma: onde não há objectivo consciente, um inconsciente assume o controle, um objectivo preexistente que fornece um sentido como que por si próprio, por força da inércia.

O código genético do movimento sionista leva­‑o a lutar contra o povo palestiniano pela posse de toda a Palestina histórica e pela expansão da colónia judaica do mar ao rio. Enquanto não for suplantado por uma decisão nacional de adoptar outro objectivo – uma decisão clara, aberta e de longo prazo – continuará a seguir o seu curso.

Nenhuma decisão desse tipo amadureceu e foi adoptada. Os ministros falam sobre outras possibilidades, tartamudeiam sobre a “Solução dos dois Estados", fazem circular diversas palavras de ordem, fazem declarações e emitem decisões, mas na verdade, no terreno, a velha política continua inabalada, como se nada tivesse acontecido.
Se outra decisão tivesse sido adoptada, a mudança teria sido de longo alcance – da “linguagem corporal” do governo ao tom da sua voz. No momento, os acordes que fazem a música são ainda os do hino da Betar.

Há alguma evidência da intenção de Olmert de não dar qualquer passo sério no sentido da paz? De facto, há. É a sua decisão de encarregar Tzipi Livni dos contactos com os palestinianos.
Se Olmert quer alcançar um avanço histórico, assegurar­‑se­‑á de que ele mesmo obterá o crédito total pelo feito. Se o entregar à sua rival, isso significa que não tem qualquer hipótese.

Na semana passada, o governo holandês abordou o ministério dos Negócios Estrangeiros israelita com um pedido para permitir aos cultivadores de flores palestinianos da Faixa de Gaza exportar a sua mercadoria para a terra das tulipas.
Tzipi Livni, vice-primeira­‑ministra e ministra dos Negócios Estrangeiros, não foi capaz de atender a esse pedido modesto. O exército proibiu­‑o.
Ao contrário da bem conhecida expressão, eles não acreditam em dizê­‑lo com flores.

Fonte: Informação Alternativa

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