Cidade do Primeiro Mundo mergulha no Terceiro
Por Mary Dejevsky*
Existe algo de primitivo e poderoso nas tempestades e enchentes, uma qualidade à qual fogo, pestilência e pragas não conseguem se equiparar.
As notícias que chegam de Nova Orleans soam como profecias do apocalipse. Cadáveres bóiam numa área que antes era o agitado e pitoresco centro da cidade; féretros se elevam do chão; jacarés, tubarões e cobras percorrem as águas contaminadas; e os desesperados sobreviventes humanos, segurando machadinhas nas mãos, agarram-se aos telhados das casas, implorando para serem resgatados.
Em todo o Sul dos Estados Unidos, o que mais chama a atenção nas regiões pantanosas não é o espírito de desafio que levou as pessoas a erguer cidades em regiões tão inclementes, mas a proximidade do mundo natural e o caráter primitivo da paisagem, repleta de aves e animais exóticos e envolta em vegetação luxuriante. Agora, após a passagem do furacão Katrina, a natureza reconquistou o espaço que era seu. Por quanto tempo, não se sabe.
Em meio a toda a devastação, o que estamos testemunhando não é apenas uma catástrofe humana, mas também o fenômeno extraordinário de uma grande cidade do Primeiro Mundo mergulhando no Terceiro.
O lago Pontchartrain, cujas águas hoje recobrem Nova Orleans, foi transformado numa imensa fossa negra. A maior parte dos veículos motorizados foi inutilizada. Não há serviços públicos funcionando: não há eletricidade, gás, água potável ou sistema de esgotos. Durante o dia, a temperatura está acima de 30C. Os telefones estão mudos. Os geradores de emergência estão ficando sem combustível. Os estoques de comida e de água estão acabando.
Sob tais circunstâncias, a pergunta pertinente é até que ponto um país tão rico e avançado quanto os EUA consegue fazer frente a um desastre natural desta escala. A resposta é mista.
Levando em conta que a maior parte de Nova Orleans fica abaixo do nível do mar, é difícil acreditar que não houvesse plano de contingência para o caso de uma inundação total. O fato de quatro quintos da população ter obedecido à ordem de deixar a cidade antes da chegada do furacão é algo impressionante.
Mas existe outra coisa que vem emergindo das imagens de Nova Orleans difundidas pela mídia. Os que permaneceram na cidade foram em sua maioria seus habitantes negros e hispânicos -ou seja, seus pobres.
As situações extremas costumam trazer à tona o que um país tem de melhor e também de pior. O "dia seguinte" do furacão foi marcado por heróicos esforços de salvamento, um alto grau de disciplina cívica e a determinação dos americanos em sobreviver e recomeçar suas vidas outra vez. Mas também demonstrou, mais uma vez, a profundidade da desigualdade que reina nas cidades americanas.
Se a mesma vontade política que deve ser aplicada na reconstrução de Nova Orleans for voltada à promoção da justiça social, a nova Nova Orleans poderá ser um lugar diferente e melhor.
* Do The Independent
Publicado originalmente no Vermelho
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